domingo, 13 de dezembro de 2009

Perdas e Ganhos - Lya Luft

O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. É uma idéia assustadora: vivemos segundo o nosso ponto de vista, com ele sobrevivemos ou naufragamos. Explodimos ou congelamos conforme nossa abertura ou exclusão em relação ao mundo. E o que configura essa perspectiva nossa? Ela inaugura na infância, com suas carências nem sempre explicáveis. Mesmo se fomos amados, sofremos de uma insegurança elementar. Ainda que protegidos, seremos expostos à fatalidade e imprevistos contra os quais nada nos defende. Temos que criar barreiras e ao mesmo tempo lançar pontes com o que nos rodeia e o que ainda nos espera. Toda essa trama de encontro e separação, terror e êxtase encadeados, matéria da nossa existência, começa antes de nascermos. Mas não somos levados apenas à revelia numa torrente, somos participantes. Nisso reside nossa possível tragédia: o desperdício de uma vida com seus talentos truncados se não conseguimos ver ou não tivermos audácia para mudar para melhor - em qualquer momento, em qualquer idade. A elaboração de "nós" iniciado na infância ergue as paredes da maturidade e culmina no telhado da velhice, que é coroamento, embora, em geral, seja visto como deterioração. Nesse trabalho nossa mão se junta às dos muitos que nos formam. Libertando-nos deles com o amadurecimento, vamos montando uma figura: quem achamos que merecemos ser. Nessa casa, a casa da alma e a casa do corpo, não seremos apenas fantoches que vagam, mas guerreiros que pensam e decidem. Constituir um ser humano, um nós, é trabalho que não dá férias nem concede descanso: haverá paredes frágeis, cálculos mal feitos, rachaduras. Quem sabe o pedaço que vai desabar. Mas se abrirão também janelas para a paisagem e varandas para o sol. O que se produzir - casa habitável ou ruína estéril - será a soma do que pensaram e pensamos de nós, do quanto nos amaram e nos amamos, do que nos fizeram pensar que valemos e do que fizemos para confirmar ou mudar isso, esse selo, sinete, essa marca. Porém isso ainda seria simples demais: nessa argamassa misturam-se boa vontade e equívocos, sedução, celebração, palavras amorosas e convites recusados. Participamos de uma singular dança de máscaras sobrepostas, atrás das quais somos o objeto da nossa própria inquietação. Nem inteiramente vítima nem totalmente senhores, cada momento de cada dia, um desafio. Essa ambiguidade nos dilacera e nos alimenta, nos faz humanos. No prazo da minha existência completarei o projeto que me foi proposto, aos poucos tomando conta dessa tela e do pincel. Nos primeiros anos quase tudo foi obra do ambiente em que nasci: família, escola, janelas pelas quais me ensinaram a olhar, abrigo ou prisão, expectativa ou condenação. Logo não terei mais a desculpa dos outros: pai e mãe amorosos ou hostis, bondosos ou indiferentes, sofrendo de todas as naturais fraquezas da condição humana que só quando adulto reconhecemos. Por fim, havemos de constatar: meu pai, minha mãe, eram apenas gente como eu. Fizeram o que sabiam, o que podiam fazer. E eu... e nós? Marcados pelo que nos transmitem os outros, seremos malabaristas em nosso próprio picadeiro. A rede estendida por baixo é tecida de dois fios enlaçados: um nasce dos que geraram e criaram; o outro vem de nós, da nossa crença ou nossa esperança.

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